Música, Emoções e Identidade: O Que Ouvimos Nos Define?
- Rafael Piccolotto de Lima
- 2 de jun.
- 5 min de leitura
Um tempo atrás, viralizou nas redes sociais um trecho de uma palestra da professora Lúcia Helena Galvão, em que ela levanta uma reflexão profunda: a música molda o nosso caráter? Ou revela aquilo que já somos por dentro?
Em sua fala, a professora apresenta ideias atribuídas ao filósofo Platão, nas quais a música não seria apenas uma arte agradável aos sentidos, mas uma ferramenta formadora do espírito humano, com um papel determinante no desenvolvimento do caráter de um indivíduo.
Ela afirma que Platão via a música como expressão direta da alma — e, portanto, a escolha musical de alguém poderia refletir seu grau de equilíbrio, de nobreza ou até mesmo de desordem interna. A harmonia ou a falta dela em uma obra musical seriam paralelos à harmonia ou desorganização presentes na psique de quem a consome ou a produz.
Essas colocações provocam muitos questionamentos — e gostaria de aproveitar esse vídeo para compartilhar algumas reflexões pessoais sobre o poder da música em nossa formação interior e em nossa expressão mais autêntica.
O perigo das leituras extremas: música não é moral absoluta
Lúcia Helena Galvão também atribui a Platão a ideia de que mudanças nas preferências musicais de uma sociedade seriam indicadores de transformações no comportamento coletivo e nas estruturas políticas. Quando uma cultura começa a valorizar músicas mais agressivas ou caóticas, por exemplo, isso poderia sinalizar desequilíbrios mais profundos naquele corpo social.
Essa visão, apesar de provocar reflexões interessantes, pode facilmente escorregar para interpretações extremas — e é aí que mora o perigo.
Atribuir à música um poder de moldar o caráter de forma quase moralista — como se certos estilos fossem “bons” e outros, “maus” — é uma generalização que ignora a complexidade tanto da arte quanto da experiência humana. Essa lógica binária tende a reduzir a música a um instrumento de doutrinação, quando, na verdade, ela pode ser um dos espaços mais férteis de expressão e autoconhecimento.
Assim como a existência humana é atravessada por sentimentos diversos — e mesmo os mais difíceis, como a raiva ou o medo, cumprem papéis importantes de proteção, reação e adaptação —, também acredito que a arte precisa dar conta dessas camadas todas da experiência. Evocar emoções densas ou desafiadoras por meio da arte pode ser algo profundamente saudável, desde que não seja feito de maneira compulsiva, dominante ou sem consciência.
O problema não é sentir, expressar ou ouvir. O problema é viver aprisionado em apenas um tipo de afeto — seja ele a euforia constante ou a angústia permanente. Da mesma forma que uma vida regida apenas pelo medo e pela agressividade tende a adoecer o espírito, uma música que só evoca esses sentimentos pode gerar desequilíbrios emocionais e psíquicos. Mas isso não a torna, por si só, “má”.
Portanto, é necessário ir além da dualidade raso/sofisticado, alegre/triste, positivo/negativo. A música é uma linguagem muito mais complexa do que essa lógica polarizada permite enxergar.
A música como espelho, expressão e transformação interior
Dito isso, é inegável que a música nos influencia. E mais: ela nos revela.
Ela é espelho dos nossos estados internos. Muitas vezes escutamos aquilo com que já estamos em ressonância. Outras vezes, usamos a música como forma de expressão ou de catarse — vivenciando sentimentos que, talvez, não conseguíssemos expressar de outra maneira.
Não há problema algum em ouvir músicas tristes quando estamos tristes. Ou músicas enérgicas quando estamos animados. O importante não é o rótulo do sentimento evocado — o essencial é reconhecer como a música funciona como uma ponte para vivências emocionais mais profundas, para a expressão daquilo que ainda não conseguimos nomear com palavras, e para a transformação da nossa consciência.
O contato com a arte pode nos sensibilizar, nos reconectar com partes esquecidas de nós mesmos, e até mesmo curar feridas — não porque evita o sofrimento, mas porque o atravessa de forma simbólica, sensível e elaborada.
A beleza além da emoção: música como narrativa e contemplação
Para além da sua função emocional imediata, a música também pode ser apreciada sob outra perspectiva: como uma narrativa sonora, como uma história contada em sons — cheia de contrastes, tensões, desenvolvimentos e resoluções.
Muitas vezes, elementos como dissonâncias, tonalidades menores ou harmonias complexas são percebidos como “tristes” ou “negativos”. Mas essa associação é limitada. Um acorde dissonante pode não evocar tristeza, mas intensidade. Uma harmonia densa pode provocar contemplação, não necessariamente melancolia.
No meu caso, por exemplo, sou especialmente atraído por universos sonoros mais densos — por dissonâncias, texturas harmônicas intricadas, estruturas pouco previsíveis. E isso não significa que vivo em estados emocionais escuros ou pesados. Ao contrário — muitas vezes, é justamente nesse tipo de som que encontro beleza, profundidade e inspiração.
Assim como assistimos a um bom drama no cinema ou lemos uma narrativa com passagens difíceis e ainda assim saímos tocados, mais conscientes, mais sensíveis — a música também pode nos conduzir por caminhos complexos sem que isso seja um problema. Pelo contrário: pode ser libertador.
Reduzir a música a um reflexo direto e raso do sentimento que ela evoca empobrece sua potência. A arte, como a vida, está cheia de nuances, ambivalências e contradições — e é exatamente isso que a torna tão rica.
A música e a nossa capacidade de sincronização
A música também nos afeta em níveis que vão além da emoção. Um deles é a nossa capacidade natural de sincronizar com o som.
Quem dança sabe bem disso: os movimentos se alinham ao ritmo. Os corpos se encontram no compasso. Mas não é só o ritmo externo que se alinha — nossa respiração, nosso batimento cardíaco e até nosso estado mental podem ser influenciados por pulsos musicais.
O mesmo vale para o aspecto emocional. Trilhas sonoras são criadas para intensificar experiências: provocar medo, gerar tensão, emocionar, inspirar. Isso acontece porque temos uma capacidade muito especial de nos alinhar internamente às atmosferas sonoras que ouvimos.
E, por isso mesmo, precisamos refletir também sobre como as repetições, os modismos, o empobrecimento da diversidade musical nos afetam.
Vivemos em uma cultura em que muitas pessoas escutam apenas o que está em alta. Muitas vezes, essa música traz sempre as mesmas temáticas: traição, ostentação, sensualidade vazia, agressividade. Não há nada de errado com nenhuma dessas temáticas isoladamente — o problema está na exclusividade emocional que isso representa. A falta de diversidade. A ausência de outras possibilidades sonoras e expressivas.
Quando nos permitimos escutar com mais variedade, mais profundidade e mais sensibilidade, ampliamos também nossa experiência emocional e espiritual.
Conclusão: a música como trilha de uma jornada pessoal
A música é uma linguagem profunda — talvez a mais profunda de todas. Ela tem o poder de nos mover, de nos transformar, de nos revelar. Mas é preciso que cada um de nós trilhe sua própria jornada musical.
Não se trata de ouvir com consciência o tempo todo. Nem de fazer julgamentos rasos sobre o que é bom ou ruim. Trata-se de buscar uma relação mais íntima, mais honesta e mais aberta com a música.
A música pode sim moldar o nosso caráter — ou ao menos tocar o que há de mais essencial em nós.
E quando escutamos com o coração aberto, talvez consigamos ouvir algo ainda mais profundo.
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Sobre o autor
Rafael Piccolotto de Lima foi indicado para o Grammy Latino como melhor compositor erudito. Ele é doutor em composição de jazz pela Universidade de Miami e tem múltiplos prêmios como arranjador, diretor musical, produtor e educador.
Suas obras foram estreadas e/ou gravadas por artistas como as lendas do jazz Terence Blanchard, Chick Corea e Brad Mehldau, renomados artistas brasileiros como Ivan Lins, Romero Lubambo, e Proveta, e orquestras como a Jazz Sinfônica Brasileira, Orquestra Sinfônica das Américas e Metropole Orkest (Holanda).
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