Será que o fazer musical é o mesmo dentro e fora da escola de música?
Para aqueles – que como eu – passaram grande parte da adolescência e começo da vida adulta dentro de instituições de ensino, de repente se deparar com a realidade do mercado musical pode ser uma grande mudança, para dizer o mínimo.
Nesse artigo te apresento um pouco das minhas experiências – desafios e conquistas – transitando de um universo ao outro.
A música pode ser a mesma, mas as relações são diferentes
Podemos dizer que a academia é – em grande parte – o cenário para o desenvolvimento pessoal, principalmente do ponto de vista do acesso e aquisição de conhecimento. Enquanto alunos, estamos em uma posição onde nossa "única tarefa" é aprender. Nesse momento outras preocupações são secundárias e, de certa maneira, o foco está em nós. Estamos na busca da excelência técnica e artística.
No mercado a realidade é outra. Enquanto a academia nos serve, no caso do mercado, somos nós que o servimos. O foco está na relação com o público e na viabilidade mercadológica daquilo que produzimos.
A qualidade é um fator importante - sim! -, mas existem muitas outras coisas a serem consideradas. Contatos, divulgação e relevância social dominam este cenário.
No universo acadêmico, estes elementos (de mercado) não são muito discutidos. Quando são mencionados, geralmente são tratados sob um ponto de vista mais teórico e histórico. Muitas vezes, beirando ao julgamento moral: "tal músico é bem comercial", "fulano de tal se vendeu e agora só faz porcaria".
Em oposição, o que, de fato, é cobrado pelas matérias é você ser um bom músico; saber tocar seu instrumento, cantar, compor, reger ou educar, dependendo do caminho que escolheu seguir.
A transição - do mundo acadêmico para o mercado musical
Para quem vive muito em um universo e, de repente, decide mudar, geralmente sente um choque.
Confesso que este foi o meu caso. Passei grande parte da minha vida - dos 18 aos 30 anos - dentro do universo acadêmico, fazendo alguns trabalhos para o mercado por fora, mas o foco era na universidade.
Aos 30, me mudei para Nova York e mergulhei no mercado. E não simplesmente qualquer mercado. Me aventurei naquele que - na minha opinião - talvez seja um dos mais difíceis e mais interessantes do mundo.
Minha trajetória e uma reflexão
Eu estava confiante, afinal, vinha de uma posição privilegiada em vários sentidos; tanto musicalmente (bem treinado e com um belo portfólio), quanto em termos de currículo, com um histórico cheio de experiências de peso e alguns prêmios muito significativos. Mas, apesar de tudo isso, a transição não foi nada fácil. Posso dizer, metaforicamente, que foi um belo tapa na cara!
Cheguei a me questionar se tudo o que eu havia construído e conquistado até ali tinha algum valor neste novo cenário. No fundo, eu esperava que meu currículo (e habilidade) me abrisse portas e/ou me garantisse um lugar bem remunerado como criador musical.
Eu já havia escrito músicas para grandes concertos, gravei álbuns, fui selecionado em editais, ganhei prêmios, fui indicado ao Grammy Latino, e isso tudo enquanto ainda era aluno. Mas, nada disso me garantiu uma posição privilegiada fora dos limites das universidade.
Essa foi a hora de controlar o psicológico. Não me deixar abalar pelos “nãos” e pensar estrategicamente. Não foi fácil. Mandei emails, mensagens para diversos espaços culturais, mostrei meu portfolio com gravações bem-feitas e músicas premiadas. Usei todas as cartas que eu tinha na manga.
Reuni uma série de músicos muito bons e investi meu dinheiro pessoal em uma gravação aqui em Nova York com uma pequena orquestra. Tudo isso para criar um material que – ao meu ver – teria relevância e excelência artística; era original e contava com músicos de alto nível. Essa gravação me levou - inclusive - a ser selecionado a apresentar na convenção internacional de compositores de jazz, além de ser finalista em um concurso de compositores de jazz da BMI.
Com esse material em mãos, eu imaginava que o projeto seria “irresistível” para espaços culturais, bares de jazz e salas de concertos.
Mas, apesar de tudo isso, dei de cara com gerentes de bares de jazz desinteressados, com agendas já determinadas e agentes culturais apáticos. O máximo que eu consegui fazer na época foram shows em espaços mais alternativos, relativamente pequenos e com público bem limitado. Até trabalhos sem cachê eu fiz para tentar apresentar meu trabalho na cena da cidade.
Essas experiências me fizeram refletir muito. Com elas eu aprendi lições que não me foram ensinadas nos 12 anos que passei dentro de prestigiadas instituições de ensino musical.
O que (realmente) importa para a maioria dos espaços de apresentação privados
Eu tive que compreender que, para uma casa de shows, mais do que a qualidade do trabalho em si, o valor da sua música está atrelada a aquilo que ela agrega enquanto negócio; o tamanho e qualidade do público que você traz.
Agora pensem comigo. Nova York é onde os maiores artistas e músicos do mundo vêm tocar e brigam pelo espaço. Eu, um jovem compositor, saindo da universidade, mesmo com grandes créditos, estava em uma competição quase que desleal com estas pessoas.
Por mais que eu acreditasse no meu trabalho, o jogo "do mercado" é totalmente diferente. Se no momento acadêmico a qualidade da música foi o que me fez ganhar mais de 20 prêmios internacionais (enquanto compositor, engenheiro de áudio e diretor musical), no mercado isso não tem tanto peso. A duras penas compreendi o que mencionei lá no início do texto: são outros os valores que predominam e ditam quem é quem.
Uma pílula difícil – mas necessária – de engolir
A realidade do mercado foi difícil de engolir enquanto artista. Talvez você se identifique comigo nesta frustração (e ilusão); nos tornamos artistas para criar algo que nos toca e emocional, para entregar ao público nossa arte no seu formato mais puro; não para ser um agente de mercado, um vendedor de projetos.
A "ficha caiu" durante meus primeiros dois anos em Nova York e, desde então, venho mudando minha maneira de produzir. Sinto que - felizmente - aos poucos eu estou me adaptando a nova realidade e virando esse jogo.
Produzi pequenos festivais de música e cultura brasileira aqui em Nova York, gravei um álbum ao vivo no Jazz at Lincoln Center (umas das principais casas de jazz do mundo), tenho recebido mais convites para me apresentar em eventos com grandes grupos, como o que recebi para dirigir a Jazz Sinfônica no Gene Harris Festival, ou para me apresentar no palco principal do Festival de Jazz de Toronto.
Cada coisa tem seu momento
Temos que entender que são realidades e momentos diferentes na evolução e história de cada artista.
Valorizo muito ter vivido intensamente meu momento acadêmico, focado nos estudos e desenvolvimento artístico pessoal. Mas, agora neste outro momento de vida, tento balancear os lados artístico e mercadológico!
E acredito que sim, sabendo jogar as regras desse jogo, é possível fazer a música que gostamos e acreditamos, de uma maneira sustentável e integrada ao mercado. O primeiro passo é entender as regras desse jogo, e depois agir de maneira estratégica.
Aliás, eu escrevi um outro artigo sobre oportunidades que talvez possa te ajudar a pensar mais sobre esse assunto. Será que você está preparado para as oportunidades que surgem na sua carreira?
Convido você a fazer a leitura do texto Oportunidades musicais: você está preparado?
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Sobre o autor
Rafael Piccolotto de Lima foi indicado para o Grammy Latino como melhor compositor erudito. Ele é doutor em composição de jazz pela Universidade de Miami e tem múltiplos prêmios como arranjador, diretor musical, produtor e educador.
Suas obras foram estreadas e/ou gravadas por artistas como as lendas do jazz Terence Blanchard, Chick Corea e Brad Mehldau, renomados artistas brasileiros como Ivan Lins, Romero Lubambo, e Proveta, e orquestras como a Jazz Sinfônica Brasileira, Orquestra Sinfônica das Américas e Metropole Orkest (Holanda).
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