Por que será que é tão difícil para a comunidade acadêmica da música falar sobre produção executiva e mercado de trabalho?
Pode-se dizer que a música tem que ser o foco principal, afinal, sem ela, todo o restante não acontece. Neste ponto estamos de acordo. Mas, por outro lado, sem uma produção estratégica, essa música dificilmente chegará ao público. E aí?
De maneira resumida, existem três aspectos importantíssimos para que a carreira de um músico avance:
Criação musical e performance;
Produção musical e executiva;
Divulgação e relação com o público.
Nesse artigo eu compartilho com vocês uma frustração minha. Eu passei 12 anos da minha vida no universo acadêmico e gostaria que alguém tivesse me ensinado que para se ter sucesso de carreira fora da universidade, além de boas criações, são necessários outros elementos que fazem a engrenagem funcionar!
Eu gostaria muito de ter aprendido essas coisas antes de ser “jogado” nesse mundo aqui de Nova Iorque, aonde cheguei, já de cara, no nível hard!
Os 3 pilares do sucesso de um criador musical
Quando estamos na universidade de música (ou conservatório), nosso foco está 100% no fazer musical. Nosso grande objetivo é nos tornarmos o melhor músico que podemos ser. Nossa dedicação vai desde desenvolver uma série de habilidades técnicas, dominar o nosso instrumento, adquirir repertório, ter uma boa base teórica, até explorar nossa criatividade.
Mas, existe uma série de outras coisas importantíssimas para a carreira de um músico, que muitas vezes são deixadas de lado no universo acadêmico. Vou definir e explicar para você esses 3 pilares necessários para o desenvolvimento de uma carreira musical de sucesso.
1) Criação musical e performance: a música em si
Tudo começa com uma música bem feita e bem apresentada. Aqui me refiro à qualidade do trabalho em si, da música e tudo que a envolve, desde a visão artística, criação musical, até a performance. É preciso entender que se não tivermos uma música de qualidade, se não formos bons músicos, é difícil que o resto aconteça.
E antes que você venha esbravejar - com todo direito - questionando a qualidade musical de uma série de músicos que estão na grande mídia fazendo sucesso, eu já adianto que sempre existe a possibilidade de um ‘make over’ - uma transformação feita por um produtor competente. Além disso, por mais que você (ou eu) ache que um determinado artista tenha uma música rasa e pouco criativa, muitas vezes se observamos o padrão do gênero musical que ele faz parte, seu trabalho provavelmente está acima da média e cumpre todos requisitos musicais básicos esperados. Existe - então - qualidade no trabalho, por mais que ela seja relativa e que você não goste.
Da minha parte, eu sinto que tive uma base muito boa durante meus estudos nesse sentido. Não posso reclamar. Fui bem preparado e criei obras que me orgulho até hoje.
Mas, esse é somente o primeiro pilar, sem os próximos é quase impossível ter sucesso de carreira.
2) Produção musical e executiva
Com o primeiro pilar no lugar - a música em si - é preciso, então, entender que ela deve ser apresentada da melhor maneira possível ao público. E aqui me refiro ao formato, não ao conteúdo. Se no primeiro pilar estávamos centrados na qualidade musical (o conteúdo), agora é preciso levar essa música aos lugares certos e de uma maneira que favoreça o trabalho apresentado (o formato).
Produção musical e produção executiva devem andar de mãos dadas. Produção musical está relacionada a todas as escolhas e ações necessárias para realizar um determinado projeto musical: desde a escolha dos músicos que irão tocar, até a supervisão da mixagem e masterização de uma gravação - se o projeto em questão for a gravação de um album, por exemplo. Já a produção executiva, lida com toda parte financeira, burocrática e logística: desde levantar dinheiro para cobrir os custos de produção, agenciamento de espaços para realização, venda de shows, até a supervisão de contratos com profissionais envolvidos. A venda do projeto para a inclusão em uma temporada de uma casa de shows ou um festival também entra aqui nessa categoria.
Saber produzir é ter a capacidade de realizar e "entregar" a nossa música, seja uma gravação, um videoclip, um show ou um concerto. Além disso, deve-se saber navegar no mercado, fazer todas as coisas necessárias para que a sua música possa existir "fora da sua gaveta".
No meu caso, pelo curso que fiz, tive a sorte de estar exposto, de certa maneira, a um pouco disso. Fiz um mestrado em Studio Jazz Writting, um curso focado em composição, arranjo e prática de estúdio. E o doutorado (em composição de jazz) foi na mesma instituição, com acesso a todos os recursos da universidade. Dessa maneira, aprendi como coordenar projetos relativamente complexos e produzir gravações. Adicionalmente, o fato de estar em uma posição de liderança, de trabalhar no Henry Mancini Institute como assistente do coordenador geral, me possibilitou desenvolver uma série de outras habilidades relacionadas à produção.
Mas, mesmo assim, me faltou preparo para lidar com a produção executiva e venda. Eu cheguei a ter uma matéria de empreendedorismo durante um semestre na Universidade de Miami, mas foi algo muito superficial. Prova disso é o fato de que eu lembro de poucas coisa desta aula e que não tive nenhuma prática nesse período.
3) Divulgação e relação com o público
Se, através do primeiro pilar, criamos uma boa música, através do segundo, viabilizamos sua realização, o terceiro é sobre a relação com público, que no final das contas é o que torna nosso trabalho financeiramente sustentável a médio e longo prazo. Nossa arte deve existir dentro do mercado; então, ter outras pessoas interessadas (e dispostas a pagar) pelo nosso trabalho é essencial para podermos continuar a criar.
Nesse capítulo, direciono sua atenção para a importância da capacidade de criar um público para seu trabalho e se relacionar com ele. Saber divulgar a sua arte e fazê-la ser importante para essas pessoas.
É exatamente esse o ponto chave (junto com a produção executiva) que geralmente fica fora do currículo de quem estuda em instituições tradicionais de música. Eu, pelo menos, não tive nenhuma matéria que fosse focada nesse assunto, e não tive - dentro da universidade - nenhuma prática relacionada. O máximo que aconteceu foram atitude proativas minhas de fazer flyers para divulgar minhas apresentações dentro da própria universidade ou em bares de música onde eu me apresentava com uma gafieira.
O universo do estudante de música
A realidade é que quando estamos na universidade, não nos preocupamos com estas questões que vão além do fazer musical, afinal de contas, nós escolhemos estudar música e queremos focar no fazer musical. Estamos imersos no mundo da artístico e queremos falar só daquilo que nos fascina ou que vai nos ajudar a sermos melhores músicos. A venda, o marketing, a negociação e o mercado, para a maioria de nós, não é algo que interessa nesse momento.
A realidade de grande parte do corpo docente é relativamente parecida com essa também. Muitos professores estão em seus cargos justamente por não quererem lidar com a dura realidade do mercado artístico. A academia musical é - de certa maneira - um refúgio para aqueles que querem lidar com o fazer musical desvinculado do mercado.
O que não pode ser dito
Trago um exemplo que vivenciei aqui nos Estados Unidos e que me chamou a atenção para esse tabu: a grande resistência das instituições de ensino musical acerca desses assuntos, e o fato dos alunos saírem da universidade pouco preparados para produzirem os próprios projetos e lidarem com o mercado.
Em uma de minhas participações em uma convenção de compositores e arranjadores aqui nos Estados Unidos, acabei trazendo, nas sessões de perguntas, questões para figurões da area sobre como eles lidavam com o fator "público". Logo que fiz a pergunta eu senti um silêncio estranho na sala, um semblante muito diferente de quando o assunto era puramente musical.
Eu levantei questões similares para diferentes palestrantes. Eu disse que sentia dificuldade de criar um público para minha música e pedia que eles dividissem a experiência deles nesse sentido. Todos se esquivaram desse assunto, como se fosse um tema não bem-vindo nesse universo.
Confesso ter ficado ligeiramente constrangido com a situação, mas - pior do que isso - fiquei frustrado porque a resposta era geralmente curta, não reconhecia a problemática e nem tentava buscar uma solução real.
Era como se fosse um problema que ninguém queria olhar, como se fosse de menor relevância, quando - na realidade - deve ser uma questão central para qualquer pessoa que queira dedicar sua vida a criação musical. Precisamos ter as condições para criar e sermos sustentáveis a longo prazo.
Nadando com os tubarões (musicais)
Posso dizer que, literalmente, ingressar no mercado de Nova York foi cair no tanque com tubarões! E eu tive que aprender na marra todas estas questões apresentadas nesse blog. Muitas vezes dando com a "cara na parede"; desinteresse de contratantes e shows quase sem público.
Sinto como se tudo isso tivesse sido um grande alerta para mim, logo saindo do universo acadêmico musical. Nesse momento pude sentir na pele essa grande incoerência - uma dissonância - entre o que eu entendia sobre minha construção enquanto artista e a realidade do mercado.
Todas composições e arranjos que tanto me orgulho e que consegui construir ao longo da minha trajetória, prêmios nacionais e internacionais (incluindo uma indicação para o Grammy Latino), mestrado, doutorado; nada disso traduzia - de maneira proporcional - para público e oportunidades de trabalho. Foi neste momento que parei e busquei entender como tudo funcionava, e a partir dai, virar esse jogo.
Quando as luzes se apagam
Quando paro para refletir, penso que apesar de ser “ressentido” por não ter tido essa formação mercadológica na universidade, me sinto extremamente privilegiado pelo mesmo motivo.
Todos estudantes de música que têm a oportunidade de passar um período focados somente na música deveriam entender como isso é um grande privilégio. No meu caso foram quase 12 anos neste universo, desde a graduação, mestrado, doutorado, até meu trabalho como professor assistente. Pude ter uma liberdade artística, tempo e energia para realmente focar no aprendizado e criação; me tornar o que hoje sou enquanto artista. Pude produzir muito, participar de concursos, ganhar prêmios e construir um portfólio que me orgulho.
Mas, entendendo que, uma vez que se tenha esse pilar central - da música em si -, é preciso investir e entender esses outros aspectos que eu discorri no blog. Precisamos saber navegar o mercado e cativar um público para nossa arte.
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Sobre o autor
Rafael Piccolotto de Lima foi indicado para o Grammy Latino como melhor compositor erudito. Ele é doutor em composição de jazz pela Universidade de Miami e tem múltiplos prêmios como arranjador, diretor musical, produtor e educador.
Suas obras foram estreadas e/ou gravadas por artistas como as lendas do jazz Terence Blanchard, Chick Corea e Brad Mehldau, renomados artistas brasileiros como Ivan Lins, Romero Lubambo, e Proveta, e orquestras como a Jazz Sinfônica Brasileira, Orquestra Sinfônica das Américas e Metropole Orkest (Holanda).
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